quarta-feira, 8 de julho de 2020
O que não podíamos, o Sangue de Cristo fez por nós
A virtude da religião, explica Santo Tomás de Aquino, é o hábito da justiça pelo qual damos ao Deus Todo-Poderoso o que lhe devemos como nosso Criador e Senhor: seu direito à adoração adequada, tanto em nossas ações externas (por exemplo, louvando-o com os lábios, curvando-nos diante dele) e atos internos (como a humilde submissão da mente e do coração em adoração). Como Ele é nosso Criador e soberano Senhor, de quem dependemos em nosso ser e em nossa vida, em nossas atividades e para a nossa felicidade, a Ele nós devemos tudo: cada parte de nós mesmos, corpo e alma.
Esse retorno não é algo que possamos fazer tal como Ele merece, mas podemos dar o máximo que é possível a uma criatura. Para o homem antes da Queda, essa virtude teria assumido a forma de um “sacrifício racional”, no qual ele não apenas ofereceria a Deus adoração, louvor e ação de graças, mas também a silenciosa homenagem de todas as criaturas. Ao fazerem isso em determinados horários todos os dias, permanecendo sempre em comunhão de amor e confiança, Adão e Eva, antes da Queda, tinham uma vida religiosa perfeita.
A Queda mudou tudo. Agora, o homem age contra aquilo que deve a Deus — age, na verdade, na medida do possível, contra o próprio Deus, pois o Senhor, que está presente em suas leis, é amado quando são obedecidas, mas desprezado, quando desobedecidas. Adão e Eva agora vivem em um mundo que se voltou contra eles, como eles mesmo se voltaram contra o seu Criador e Senhor. Eles precisam trabalhar para sobreviver, sofrendo no trabalho, sofrendo no nascimento. Eles se cansam, se frustram e vacilam. O pior de tudo é que, quando se voltam para Deus, não é com a familiaridade íntima de uma criança, mas com a consciência abalada de um renegado, tentando compensar uma ofensa de gravidade quase infinita.
Para os filhos caídos de Adão, portanto, a virtude da religião deve necessariamente assumir a forma de um culto sacrificial pelo qual Deus é honrado e também aplacado. O derramamento de sangue simboliza a morte da própria vontade egoísta: derramar a vida, dolorosamente, para restaurar o que foi perdido e mostrar que pertence apenas a Deus. “Sem derramamento de sangue, não há perdão dos pecados” (Hb 9, 22).
Deus deu a Israel a Antiga Lei como um sistema, uma forma estabelecida de adoração que tornaria necessária a vinda de um Mediador e Redentor, de alguém que, em si mesmo, pudesse oferecer a Deus uma adoração verdadeiramente digna de seus direitos sobre toda a Criação. Poder-se-ia chamar toda a Antiga Lei de grande “ritual do ofertório”, pelo qual a vítima foi preparada na presciência de Deus, em antecipação à vinda do Messias, o Cordeiro de Deus. A consagração corresponde à morte deste Cordeiro no altar da Cruz. A Comunhão significa tomar parte na salvação que nos foi adquirida ao preço do seu Sangue precioso.
Somente Cristo, portanto, realiza de modo perfeito a virtude da religião, e nós temos o privilégio incomparável de sermos inseridos em sua própria adoração. A Missa latina tradicional expressa essa verdade em um momento pungente, escondido da vista do leigo, mas não do seu conhecimento, caso ele acompanhe as orações em um missal.
Quando está prestes a tomar o Preciosíssimo Sangue, o sacerdote no rito antigo pronuncia o verso do Salmo: Quid retribuam Domino pro omnibus, quae retribuit mihi? (Sl 115, 12), “Que poderei retribuir ao Senhor por todas as coisas que ele me deu?” Ele pega o cálice com mais dois versos: Calicem salutaris accipiam, et nomen Domini invocabo. Laudans invocabo Dominum, et ab inimicis meis salvus ero (Sl 115, 4; 17, 4), “Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor. Louvando, clamarei ao Senhor e serei salvo dos meus inimigos”.
Em seguida, ele se benze com o cálice em forma de cruz e, segurando a patena sob ele, toma o Preciosíssimo Sangue após pronunciar as palavras: Sanguis Domini nostri Jesu Christi custodiat animam meam in vitam aeternam, “Que o Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo preserve a minha alma para a vida eterna”.
Em STh II-II 80, 1, Santo Tomás cita o Sl 115, 12: “Que poderei retribuir ao Senhor por tudo o que ele me deu?”, como testemunho bíblico da virtude da religião, pela qual damos o que podemos ao Senhor, embora nunca possamos dar o suficiente, pois nunca lhe retribuímos um dom equivalente ao que Ele nos deu. A colocação deste versículo no ponto mais alto da Missa, em que se bebe o Sangue do Senhor, enfatiza o aspecto da justiça na Liturgia. O homem se esforça para voltar-se a Deus, e o melhor retorno que ele pode fazer é, de fato, comungar o Corpo de Jesus Cristo e permitir que Ele mesmo agradeça ao Pai dentro e através de quem comunga.
É por isso que o sacerdote, logo em seguida, acrescenta: “Beberei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”. O Justo e Santo vem, por misericórdia, habitar em seu interior, para que o homem possa, unido a Cristo, oferecer-se a Deus como uma oblação digna. O cristão incorporado a Cristo tem o “Deus de Deus, luz da luz”, dentro de si, e entre o Pai e o Filho há o amor mais elevado e a mais sublime justiça, como se cada um deles estivesse eternamente dando ao outro a sua perfeita retribuição. O Pai não apenas gera o Filho, mas nele se compraz e o recebe no amor eterno e recíproco que é o Espírito Santo. A Sagrada Comunhão coloca o fiel nesta circumincessão ou habitação mútua das Pessoas divinas. É por isso que o cálice é mencionado como “calicem salutis perpetuae”: o cálice da salvação eterna.
É como se esse pequeno ritual nos estivesse dizendo: “Sim, ó homem, para vós é impossível retribuir justamente ao Senhor por tudo o que Ele vos deu”, mas “a Deus nada é impossível” (Lc 1, 37).
Como ensina a Madre Matilde do Santíssimo Sacramento (1614–1698):
A Missa é um mistério inefável no qual o Pai eterno recebe homenagens infinitas: nela Ele é adorado, amado e louvado como merece; e é por isso que somos aconselhados a receber a Comunhão com frequência, a fim de cumprirmos para com Deus, por meio de Jesus, todas as nossas obrigações. Isso é impossível sem Jesus Cristo, que entra em nós para realizar o mesmo sacrifício da Santa Missa.
A sequência dos versículos do Salmo, uma vez sorvido o cálice, conclui apropriadamente: “Louvando, clamarei ao Senhor e serei salvo dos meus inimigos”. Que motivo de louvor: receber o próprio Senhor, Aquele a quem clamamos! Que proteção contra nossos inimigos! O Senhor nos salvará, porque, na Santa Comunhão, Ele vem habitar em nós, aplicar-nos os méritos de sua morte e aumentar nossa participação em sua vida ressuscitada.
A tristeza dos católicos por não poderem assistir à Missa e receber Nosso Senhor sacramentalmente deve intensificar nosso desejo espiritual pelo santo sacrifício e por uma participação cada vez mais frutuosa, sempre que o Senhor quiser que tenhamos de novo a felicidade de participar do seu banquete. Somos chamados a fazer o que pudermos e a nos entregar nas mãos de Deus, usando as palavras de nosso Salvador na Cruz: “Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito” (Lc 23, 46).
Fonte: Padre Paulo Ricardo
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