Como as revelações privadas que Deus se digna fazer a certos santos e místicos supõem e não podem contradizer a revelação pública que Ele fez a toda a Igreja nem as verdades que sobre Ele podemos alcançar com as luzes da razão, convém repassar brevemente, no dia em que celebramos a memória de S. Faustina Kowalska, o que uma e outra fonte, isto é, a revelação divina e a inteligência humana, nos dizem sobre a divina misericórdia.
1) É evidente, antes de mais, que em Deus há misericórdia. Não há, com efeito, doutrina mais constante em toda a Escritura: “O Senhor é clemente e misericordioso” (Sl 110, 4), junto ao qual se acha a misericórdia e redenção copiosa (cf. Sl 129, 7). E a razão nos mostra que, se a Deus hão de atribuir-se todas as perfeições criadas, não segundo o modo, finito e participado, com que se dão nas criaturas, mas como infinitas e idênticas à sua própria substância, a virtude da misericórdia deverá predicar-se dele em sentido próprio quanto à sua essência, ou seja, quanto ao que nela é formal ou constitutivo (a saber, a displicência pela miséria alheia e o buscar-lhe remédio), e apenas em sentido metafórico quanto ao que nela é acidental (a saber, a paixão da tristeza, que é uma afecção do apetite concupiscível). Daí dizer o Aquinate que, atribuída a Deus, a misericórdia designa o efeito da virtude, que é repelir o mal ou a imperfeição alheia, mas não o afeto da paixão, que é entristecer-se por esse mal ou imperfeição como algo próprio (cf. STh I 21, 3c.).
2) É, por isso, evidente que a misericórdia, tomada em sentido próprio, não se predica de Deus e dos homens unívoca, mas analogamente, na medida em que, dita de nós, a misericórdia se refere primeiro à tristeza pelo mal alheio, e apenas secundariamente do socorro efetivo, enquanto que, dita de Deus, ela se refere antes e de modo perfeitíssimo ao socorro efetivo que Ele presta às criaturas, e apenas secundariamente e por certa metáfora à tristeza pelo mal alheio.
3) Ora, dado que não há miséria maior para o homem do que não alcançar o fim para o qual foi criado, que é a visão intuitiva de Deus no céu, segue-se que nada move mais a misericórdia divina a socorrê-lo do que os males que o põem em perigo de frustrar esse fim, ou seja, o pecado. E visto que a misericórdia consiste formalmente na displicência pelo mal alheio e no buscar-lhe remédio, segue-se que em nada se manifesta mais a misericórdia de Deus para com o homem do que em detestar o pecado e buscar por todos os meios afastá-lo de tamanho mal, segundo aquilo: “Vós não sois um Deus a quem agrade o mal” (Sl 5, 4): é a displicência; “Não me comprazo com a morte do pecador, mas antes com a sua conversão, de modo que tenha a vida” (Ez 33, 11): é o bem que Ele busca com os socorros de sua misericórdia.
Temos aí um bom critério para avaliar certas (falsas) interpretações da divina misericórdia, apresentada por muitos como uma tolerância ou indiferença quase infinitas pelo pecado, quando o que ela supõe, na verdade, é uma intolerância santíssima com o mal que Deus mais detesta e o empenho incansável de livrar o homem dele, o que porém não pode ser feito se o mesmo homem lhe resistir: “O Senhor Deus é generoso e misericordioso e não desviará os olhos de vós, se voltardes para Ele” (2Cr 30, 9b); “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para serem apagados os vossos pecados” (At 3, 19).
Fonte: Padre Paulo Ricardo
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